Paula

Quarta-feira, Julho 1, 2009

Um dia conheci-a. Triste. Olhos mortiços.

Fui apanhada na curva da vida, dizia-me.
Ao contrário da minha própria mãe, por exemplo, vi-lhe quase sempre uma expressão alegre, voluntariosa. Amava os filhos e o marido, amava a vida e o que vivia… ou assim pensava eu.

A filha era minha conhecida. Conhecida porque não a considerava bem minha amiga. Era caprichosa. E mimada. Achava eu.

Um dia, tinha perto de quinze anos, fui lá a casa. Gostava da D. Paula eu.

A filha não estava.

Gostava de mim a D. Paula. Achou-me uma mulherzinha e deu-se, nesse dia, por entre chávenas de chá, a minha primeira conversa de mulherzinha.

Não nasci para ter marido, atirou assim. Nem filhos. Nasci para viver sozinha, para estar sozinha.

Casar, ter os meus filhos, contentar-me com um emprego de porcaria, uma vida de porcaria. Foi um erro. Foi tudo um erro.

E sabes o pior? Criei dois monstros! Criei um marido que se acha o melhor. Porquê? Porque lhe digo isso todos os dias. Os meus filhos? Porque os amo mais que tudo, mais que a vida. Porque os convenço que somos todos maravilhosos. E quem me convence a mim? Quem me diz que sou boa? Ninguém. Porque não sou, sabes.

Fiquei estarrecida. Tanta confiança me demonstrava. A mim, sempre tão medrosa e insegura e estupidamente modesta.

Não me olhes assim minha querida, vendo-me de chávena parada no ar. É verdade. Construo a mentira para todos e sou muito convincente nisso.

A verdade, minha querida, é que não nasci para ser casada. Não nasci para ser mãe. Não nasci para viver com gente.

Eu merecia uma vida melhor. Eu merecia um marido melhor e uns filhos melhores.

Mas também os meus filhos e o meu marido mereciam alguém melhor.

A conversa não acabou com grandes conselhos sobre a minha vida ou o meu futuro, porque não tinha nenhuns.

Apenas foi a minha primeira conversa de cozinha… de mulherzinha. De um mundo que não conhecia. O da mentira piedosa. Da mentira que às vezes as mães, mulheres, heroínas, vencidas da vida, recorrem. Daquelas tão profundas, sabem?, que descobrimos que não podemos contar a ninguém. Sem querer, tornei-me amiga daquela colega – confesso – para poder estar mais próxima da D. Paula. E depois confesso também , tornei-me mis atenta s suas reacções. E vi-lhe, depois, só depois de já saber, tantas vezes os olhos trites que disfarçava sob o cansaço. O sorriso que escondia as lágrimas, o carinho solitário.

Um dia ganhei coragem e perguntei-lhe porque não se desfazia daquilo tudo? Porque não procurava uma vida melhor, que tinha direito, sabe?

Sei, minha querida, claro que sei. E sei também que não conseguiria. Esta casa, apesar de não saber, precisa de mim. Fui eu que criei esta situação. Fui eu.

E, depois, minha querida, se apenas por um dia, um minuto, alguém descobrir que eu sou miseravelmente infeliz, se alguém sequer desconfiar, vai tornar inútil todo estes anos de fingimento e de dor atroz, não achas?

Concordei com ela.

De todos os que me afastei quando mudei de casa foi a D. Paula de quem senti mais falta.

Convidei-a para o meu casamento e fui a única que percebi porque chorou tanto. E não disse a ninguém.

Porque conto isto hoje?

Porque ela mudou-se de terra, o marido deixou-a, disse que achou alguém mais novo mas não melhor, os filhos estão também casados e cada um com a sua vida,

ela?

Disse-me que estava sozinha, de olhos sorridentes. Finalmente sozinha… e foram as palavras mais felizes que lhe ouvi alguma vez dizer.

Porque o nome é inventado.

Porque lhe pedi.

Podes escrever sim. Mas não te preocupes, disse-me. A minha história é tão mirabolante que ninguém acreditará nela. Dirão todos que é mais uma daquelas tuas histórias.

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Quarta-feira, Julho 1, 2009

Saúdo-a com um abraço apertado, porque ela não gosta de abraços e a mim permite que o faça, de cara torcida e um humpf engasgado.
Cara fechada como sempre porque o alto dos seus quinze anos não lhe permitem sorrir.
– queres contar-me alguma coisa? Faz-me o favor de me beijar, menina, que a sua mãe não criou nenhuma mal-educada.
– Só tu, realmente! (…) pronto, já está! O que aconteceu? O que aconteceu, dizes tu? É por isso que te detesto, pá! E achas que precisa de acontecer alguma coisa a mim – bate com força no peito – para estar assim? Só o viver é mau! A crise! A escola! Em casa! O trânsito! Os transportes! – pausa teatral enfrentando-me o olhar – queres que continue? Queres?
– Pois, é verdade. Mas e não ias passar o fim de ano com o … teu novo namorado? Deve ter sido divertido, não?
– Foi, foi. Esta coisa apanhou-me de surpresa. Pensei que por esta altura já teríamos terminado, sabes? Ele na Nazaré, eu em Lisboa. Mas não! E somos tão diferentes! Acreditas que ele não quer ir para a faculdade? Não quer! Não é que não possa ou não tenha inteligência, simplesmente não-quer-ir! É impressionante! Quer acabar o décimo segundo para ir trabalhar. É impressionante!
– E os dois? Como estão?
– Somos tão diferentes! Eu quero viajar, aprender, viver, conhecer coisas novas, pessoas novas, experimentar… ele quer ser feliz. Feliz! É o que ele diz sempre. Feliz! Achas normal?
As palavras são expulsas com ferocidade, raiva, sangue novo. Aguardo eu, faço eu agora uma pausa teatral.
– E os dois – enfatizo – Como estão?
Fita-me de olhos muito abertos. Vejo-lhe a lágrima detestável aparecer.
– Achas possível amar?
– Sabes que sim.
– Pois, casal de pombinhos e tal! humpf! Achas possível eu amá-lo. É que eu não quero, sabes bem! Não quero mesmo.
O trânsito ajuda. Estamos sozinhas e paradas na ponte. Ficamos em silêncio.
– Tinha saudades tuas.
– Eu também.
– E a tua passagem de ano?
– Calma, claro. Em casa como F. e as Crias.
– Apanhei uma tosga descomunal. – olha-me recuperando a raiva – sabes que ele não bebe? Não bebe! Diz que não gosta do que a bebida faz. Diz que gosta da vida que tem e de sentir tudo o que vive! Achas normal? – silêncio – mas foi um querido… no dia seguinte tratou-me e tudo. Quando é que voltas às tuas passagens de ano, hã? Lembras-te? Até às tantas.
– Muito, muito depois de adormeceres cansada ao meu lado. – rimos – é bom estar apaixonada, não é? Confessa, vá!
– É. – os olhos brilham – é bom, sim.

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